segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

O MACACO NU

O MACACO NU
Desmond Morris
Editora Livros de bolso Europa-América, 3ª Edição.
Agosto de 1997, Mira-Sintra . Primeira edição data de 1967
256 páginas



Li todo o livro e gostei de ter lido, entretanto achei algumas partes pouco explicativas, penso que faltaram referências em determinados momentos.
O livro trata do homem como primata, a importância da evolução sexual na evolução humana, a diferença entre o período de maturação no homem e outras espécies, a diferença forma de exploração do ambiente e as formas de interação entre o homem e outras espécies de animais.
Aconselho a leitura do livro a estudantes de Biologia, principalmente aqueles que pretendam seguir estudos na área de etologia e evolução, psicólogos e zoólogos, porque o livro coloca a evolução humana relacionando os processos evolutivos biológicos e culturais, antropólogos e todos que tenham interesse pelo assunto, pois apesar de ter algum contendo científico, o livro é escrito de forma muito clara e fácil de compreender.

Este pequeno parágrafo representa bem o que o assunto tratado no livro:

Assim, cá temos o nosso macaco pelado, vertical, caçador, colecionador de armas, territorial, neotécnico e cerebral, primata de origem e carnívoro por adopção, preparando para conquistar o mundo. Mas ele é ainda um modelo novo e experimental, e os protótipos, têm muitas fezes defeitos. Neste caso, as principais complicações dependerão do fato de os seus progressos culturais ultrapassarem muitas vezes o genéticos. Os genes atrasaram-se e ele nunca esquecerá que, apesar de todas as modificações que introduza no ambiente, continua, bem no fundo, a ser um macaco pelado.

Existe alguma relação entre a capa e o contexto do livro? Qual?

A ilustração da capa corresponde muito bem ao conteúdo do livro.


Gostou desta organização ou mudarias alguma coisa? O quê? Porquê?
O conteúdo ficou sequencialmente organizado de forma a facilitar o seu entendimento.


Como está organizado o livro (cápitulos, subcapítulos, …)?
O livro está dividido em 8 capítulos, possui introdução, Apêndice-Referências bibliográficas e bibliografia

Resumo:

Comparando o homem com seus parentes primatas observa-se diversas diferenças, entre elas é conspícua a pele, já que o humano é o único que apresenta a maior parte da superfície do corpo sem pêlos. Por isto, o autor o denomina macaco pelado. Para compreender melhor as mudanças que diferenciaram tanto o macaco pelado das outras espécies de primatas é necessário pesquisar o seu passado e o presente. Entre as principais mudanças na forma de vida que desencadearam as outras mudanças está o hábito de vida terrestre. Com a mudança da paisagem algumas espécies de macacos, incluindo o macaco pelado foi obrigado a deixar a boa e velha árvore que dava proteção, abrigo e alimento para encarar animais ferozes no chão. A partir deste momento o macaco pelado foi obrigado a lutar com outros animais e a caçar para ter alimento, modificando o hábito alimentar e as relações entre os membros do grupo. A ato de caçar em grupo estimulou o o desenvolvimento do raciocínio e as relações sociais.
Com o tempo este grupo de primata tornou-se monogâmico, surgiram então algumas regras sociais relativas a este fato. Diversas modificações no corpo e na atitude foram responsáveis por uma evolução sexual, que está diretamente relacionada a evolução do macaco pelado. A criação dos filhos é muito importante para os macacos pelados. A neotecnica, que não acontece em outras espécies de primatas passa ocorrer no macaco pelado, sendo responsavel em grande parte pelo desenvolvimento do raciocínio lógico. A partir do momento que a infância é mais duradoura, o cérebro é mais estimulado e o macaco pelado passa a ter cada vez maior capacidade de associação, o que é de extrema importância para sua sobrevivência.
Com o aumento do raciocínio, o macaco pelado passou a explorar cada vez mais o mundo a sua volta tornando-se assim o primata mais oportunista e menos “especialista”. Para esta espécie uma outra espécie animal normalmente se encaixa em um dos cinco critérios: presa, simbionte, competidores, parasitas ou perseguidor. Quanto mais distante filogeneticamente e quanto mais perigosa, menos apreciada é outra espécie pelo macaco pelado. A idade e sexo do indivíduo macaco pelado também influencia no grau de apreciação e relacionamento com outras espécies.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

Sêmen

















Mestre Ambrósio

Composição: Siba e Bráulio Tavares

Nos antigos rincões da mata virgem
Foi um sêmen plantado com meu nome
A raiz de tão dura ninguém come
Porque nela plantei a minha origem
Quem tentar chegar perto tem vertigem
Ensinar o caminho, eu não sei
Das mil vezes que por lá eu passei
Nunca pude guardar o seu desenho
Como posso saber de onde venho
Se a semente profunda eu não toquei?
Esse longo caminho que eu traço
Muda contantemente de feição
E eu não posso saber que direção
Tem o rumo que firmo no espaço
Tem momentos que sinto que desfaço
O castelo que eu mesmo levantei
O importante é que nunca esquecerei
Que encontrar o caminho é meu empenho
Como posso saber de onde venho
Se a semente profunda eu não toquei?
Como posso saber a minha idade
Se meu tempo passado eu não conheço
Como posso me ver desde o começo
Se a lembrança não tem capacidade
Se não olho pra trás com claridade
Um futuro obscuro aguardarei
Mas aquela semente que sonhei
É a chave do tesouro que eu tenho
Como posso saber de onde venho
Se a semente profunda eu não toquei?
Tantos povos se cruzam nessa terra
Que o mais puro padrão é o mestiço
Deixe o mundo rodar que dá é nisso
A roleta dos genes nunca erra
Nasce tanto galego em pé-de-serra
E por isso eu jamais estranharei
Sertanejo com olhos de nissei
Cantador com suingue caribenho
Como posso saber de onde venho
Se a semente profunda eu não toquei?
Como posso pensar ser brasileiro
Enxergar minha própria diferença
Se olhando ao redor vejo a imensa
Semelhança ligando o mundo inteiro
Como posso saber quem vem primeiro
Se o começo eu jamais alcançarei
Tantos povos no mundo e eu não se
iQual a força que move o meu engenho
Como posso saber de onde venho
Se a semente profunda eu não toquei?
E euNão sei o que fazerNesta situação
Meu pé...Meu pé não pisa o chão.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

A hipóte da rainha vermelha

Claudinei E. Biazoli Jr.1, Fábio de A. Machado2,
Leonardo G. Trabuco1, Victor X. Marques2 e Ubiratan A. Lima2
1Curso de Ciências Moleculares, Universidade de São Paulo, Brasil
2Instituto de Biociências, Universidade de São Paulo, Brasil



Resumo
A noção de que o processo evolucionário é um jogo de soma zero foi introduzida nos estudos de evolução pela primeira vez por Leigh Van Valen. Denominada Rainha Vermelha, essa hipótese foi inicialmente formulada para explicar certos padrões no registro que apontavam para a independência estatística entre idade de um táxon e sua susceptibilidade à extinção. De acordo com essa hipótese, o ambiente dos seres vivos está em constante deterioração forçando as espécies a um eterno esforço para manter-se adaptadas.
Após 30 anos de extensa discussão na comunidade científica, a hipótese permanece tão polêmica e controversa quanto era no princípio, ainda que gozando de uma fama considerável e ferrenhos propagandistas.
Este trabalho dedica-se a discutir o desenvolvimento histórico da hipótese da Rainha Vermelha, assim como os dados que a fundamentam e as críticas mais recorrentes, ao lado de suas implicações imediatas e aplicações atuais em estudos biológicos. São analisadas com particular interesse as expressões do modelo previsto pela Rainha Vermelha nas relações ecológicas coevolucionárias do tipo predador-presa e hospedeiro-parasita, enfatizando, no último caso, suas
ligações com a tradução protéica e a manutenção do sexo. Também são debatidos os limites da hipótese da Rainha Vermelha, em especial na perspectiva das relações mutualistas (efeito do Rei Vermelho).
O artigo completo encontra-se no endereço: http://www.cecm.usp.br/~ltrabuco/escritos/redqueen.pdf

quinta-feira, 20 de novembro de 2008

A origem dos mamíferos modernos

Alexander Kellner Museu Nacional - Academia Brasileira de Ciências - UFRJ 07/11/2008

Todos os mamíferos que vivem nos dias de hoje podem ser classificados em um dos três principais grupos existentes: Monotremata, Marsupialia e Placentalia. Destes, têm amplo predomínio os placentários, que reúnem em torno de 5 mil das 5.400 espécies de mamíferos descritas até agora e são encontrados em praticamente todas as partes do nosso planeta. Tigres, ursos, preguiças, primatas, elefantes, baleias, morcegos, coelhos e roedores são apenas alguns dos placentários mais conhecidos.
Uma das principais discórdias entre os pesquisadores refere-se a quando esses mamíferos modernos se originaram e se diversificaram. Liderados por John R. Wible (Museu de História Natural de Carnegie, Pittsburgh, Pensilvânia), pesquisadores dos Estados Unidos e da Inglaterra descreveram um novo fóssil da Mongólia e questionaram dados moleculares sobre a origem dos placentários. O estudo foi publicado no ano passado na Nature e esquenta o debate sobre o assunto.

O achado da Mongólia

O mamífero primitivo que Wible e colegas descreveram pertence a um grupo de placentários chamado de Cimolestidae, que surgiu no topo do Cretáceo e se extinguiu logo no início do Terciário. Bastante raro no registro fóssil, os Cimolestidae são compostos por poucas formas, conhecidas por arcadas incompletas ou dentes isolados.
Chamada de Maelestes gobiensis, a nova espécie é baseada em um único exemplar, porém bastante completo, com crânio, mandíbula e vários elementos pós-cranianos, preenchendo diversas lacunas sobre o conhecimento do grupo.
Maelestes gobiensis é um dos menores mamíferos já encontrados (seu crânio mede menos de três centímetros de comprimento). Ele foi descoberto na região Ukhaa Tolgod, na Mongólia, em rochas da Formação Djadokhta com idade estimada entre 75 e 71 milhões de anos.

Modelos de evolução dos mamíferos modernos

De forma resumida, existem três linhas de pensamento que procuram explicar a origem e diversificação dos placentários. Os defensores do chamado modelo “explosivo” advogam que esse grupo de mamíferos modernos teria surgido e se diversificado próximo ao limite Cretáceo-Terciário, aproximadamente há 65 milhões de anos. Em sua maioria, os defensores dessa hipótese são paleontólogos, que se baseiam no registro fóssil.
Um segundo modelo sugere que os placentários são bem mais antigos, tendo surgido dentro do período Cretáceo, inicialmente com poucas formas, que se diversificaram bem próximo – ou mesmo depois – do limite Cretáceo-Terciário. Por último, uma terceira corrente de pesquisadores acredita que a origem e diversificação dos placentários é bem anterior ao limite Cretáceo-Terciário, não tendo deixado, no entanto, um bom registro fóssil.
Esses dois últimos modelos são defendidos particularmente por cientistas que se valem de dados moleculares, obtidos a partir dos placentários recentes (veja coluna de março deste ano para mais informações sobre pesquisas moleculares).

Novos resultados

A partir de Maelestes gobiensis, Wible e colegas fizeram uma análise da relação de parentesco dos principais grupos de mamíferos – extintos e recentes –, valendo-se de dados anatômicos. O estudo resultou em um novo posicionamento de diversos placentários dentro do quadro evolutivo e contou uma história bem distinta sobre a evolução desses mamíferos.
Entre as mudanças está a posição dos Xenarthra (tatus, preguiças e tamanduás). Anteriormente eles eram considerados placentários basais, o que levou à teoria de que os mamíferos modernos teriam se originado nos continentes do Sul (unidos no passado em um supercontinente chamado de Gondwana). De acordo com a nova pesquisa, os placentários mais primitivos se originaram perto do limite Cretáceo-Terciário nos ditos continentes do Norte (unidos no passado no supercontinente Laurásia), que, desse modo, teria sido o berço dos mamíferos modernos.

Controvérsia

A discrepância entre os dados morfológicos (principal fonte dos paleontólogos) e os dados moleculares resulta em diferentes idades para a origem dos placentários. Segundo os paleontólogos, incluindo Wible e sua equipe, os mamíferos modernos se originaram em torno de 65 milhões de anos atrás, próximo ao limite Cretáceo-Terciário (ou talvez até depois disso). Já dados moleculares estendem a origem desse grupo para mais de 140 milhões de anos atrás.
Como os cientistas poderão resolver essa controvérsia? Pelo lado dos paleontólogos, a única maneira é realizar mais escavações para continuar encontrando novos fósseis que poderão corroborar – ou refutar – as hipóteses apresentadas. Pelo lado dos biólogos moleculares, existe a necessidade de continuar pesquisando metodologias mais sofisticadas que possam resolver problemas ligados a variações das taxas de substituições genéticas, que são influenciadas por diversos fatores, incluindo o tipo de animal estudado.
De qualquer maneira, estudos como o de Wible e colaboradores indicam um aumento significativo da diversidade dos mamíferos modernos após o limite Cretáceo-Terciário, ou seja, após a extinção dos grandes dinossauros.









quarta-feira, 19 de novembro de 2008

Mendelismo e evolução

Resenha do livro: Mendelismo e evolução
ed. nueva colecion
E.B. Ford


Este livro foi escrito em 1950, por E. B. Ford. É válido ressaltar que nesta época os experimentos na área da genética, citologia e embriologia estavam já em grande avanço, porém, obviamente muitas questões que hoje já foram desvendadas não eram conhecidas até então. Segundo T: S. David (1992), a estrutura da molécula de DNA foi elucidada em 1953, por James Watson e Francis Srick, sendo assim, é obvio que o livro em questão não considera este factor.
Os trabalhos de Mendel foram publicados em 1865 e 1869, e foram realizados em uma época em que não se conheciam mecanismos da divisão celular e nem se tinha ideia sobre onde estariam localizados os factores responsáveis pela transmissão de caracteres hereditários. Foi somente em 1900 que foram dados a estes trabalhos o devido crédito (M. S. Fábio, 1981). As diversas descobertas científicas que aconteceram nesta época se encaixaram perfeitamente em suas conclusões, como por exemplo a descoberta dos cromossomas homólogos, da formação de gâmetas, da duplicação celular e da fertilização e foram de grande importância para comprovação das conclusões de Mendel.
O livro coloca diversos conceitos da genética, algumas vezes utiliza termos que foram utilizados no trabalho de Mendel, como por exemplo factor, que era a forma como Mendel se referia aos genes. Além de conceituar, o autor explica resumidamente processos importantes como a herança ligada, herança ligado ao sexo, combinação, crossing-over e claro mutação. Depois, relaciona os assuntos e conceitos tratados com a teoria da evolução e secção natural e artificial. Por último, coloca problemas relacionados ao assunto que já foram estudados para maior compreensão do leitor.
A leitura deste livro é de extrema relevância para aqueles que pretendem seguir carreira em qualquer área da biologia. Trata de assuntos que possuem conexão direta com todas as áreas, desde a embriologia até a biogeografia. Não deve, porém, de forma alguma ser colocado como livro base em nenhum estudo, pelo facto de ser desactualizado é imcompleto e pode apresentar pequenos erros.

terça-feira, 18 de novembro de 2008

Do the evolution

Os viajantes e a biogeografia


PAPAVERO, N. e TEIXEIRA, D. M.:
.Os viajantes e a biogeografia.:
História, Ciências, Saúde . Manguinhos,
vol. VIII (suplemento), 1015-37, 2001.
Apresenta-se um breve panorama das
principais teorias biogeográficas, mostrando
como o conhecimento acumulado por
naturalistas viajantes foi responsável por seu
teste e eventual rejeição. Enfatiza-se a
importância de se conhecerem os relatos dos
antigos viajantes e naturalistas, para avaliar
o quão severa foi a ação antrópica sobre a
distribuição geográfica de alguns grupos de
vertebrados.
PALAVRAS-CHAVE: biogeografia, teorias,
contribuição dos viajantes, padrões de
distribuição de certos vertebrados, ação
antrópica.


Criacionismo e traducianismo


Preliminarmente, necessitamos introduzir dois termos, criacionismo e traducianismo, adaptados à biogeografia por Papavero e Balsa(1986,p. 152; ver também Papavero et alii, 1995; Papavero et alii, 2000). A existência de um único centro de origem e dispersão, a partir do qual os indivíduos das espécies animais se dispersam para ocupar o mundo é o que se chama .criacionismo. Por traducianismo. entendese a existência de múltiplos (e contemporâneos) centros de criação. (regiões biogeográficas); nesse caso, cada espécie teria aparecid(ou sido criada) já em sua própria região, não tendo ali chegado, necessariamente, por dispersão, a partir de um único centro original. O texto do Gênesis, do ponto de vista biogeográfico, é traducianista: existiu um único centro de origem e dispersão original . o Paraíso terrestre; secundariamente serviram como centro de origem e dispersão o Ararat (para animais e homens) e Babel (só para os homens). A biogeografia traducianista e o livro do Gênesis Que o patriarca Noé levara em sua arca, por ordem divina, sete casais de cada espécie de animais puros e um casal de cada espécie de animais impuros, a fim de salvá-los do dilúvio (que, diga-se preliminarmente, foi quase sempre aceito como um fenômeno universal, e não local) foi questão mais ou menos pacífica entre os pensadores e filósofos naturais da Europa cristã, até pelo menos o século XVIII. Cessado o cataclismo e escancarada a porta da arca, esses animais, obedecendo a ordem de Deus (crescei e multiplicai-vos.),voltaram a povoar o mundo (Browne, 1983). Mais do que um episódio bíblico, esta foi a primeira teoria biogeográfica proposta e a que mais tempo permaneceu vigente. Seuspostulados básicos (considerem-se também os episódios da criação dos animais no Jardim do Éden e da Torre de Babel) são: existe um único centro de origem da biota, um ponto bem definido da face da Terra (o Éden . o centro de origem e dispersão primordial, o Ararat e Babel . centros secundários); desse centro de origem animais (e homens) dispersam-se para povoar o mundo; durante a dispersão radial, podem eles sofrer mudanças em seus caracteres somáticos, provocadas pela influência direta do meio e herança desses caracteres adquiridos (assim se teriam originado as diferenças dos diversos grupos de raças humanas, por exemplo). Como toda teoria científica,entretanto, acabou esbarrando em certos fatos, que serviram para testá-la. Exemplificando, teria Noé transportado .todas. as espécies de animais originalmente criadas por Deus no Jardim do Éden ou apenas as espécies de vertebrados terrestres bissexuadas de fecundação cruzada? Os animais aquáticos não necessitariam ser levados pelo patriarca, nem aqueles nascidos por geração espontânea(como então se acreditava) . depois do dilúvio, para estes últimos,havia grande quantidade de matéria orgânica em decomposição, decuja fermentação poderiam surgir (Papavero, 1992, p. 51). Em sua obra De Civitate Dei (A cidade de Deus), santo Agostinho(354-430) chegou à conclusão de que Noé tivera que transportar emsua arca todas as espécies de animais, sem exceção. Foi levado a isto por duas razões. A primeira é que, para os maniqueístas seus contemporâneos, Deus não havia criado os animais e as plantas, seres destinados à corrupção e à morte; Deus criara apenas os seres douniverso supralunar aristotélico (como o sol, a lua, os planetas e as estrelas fixas), o éter, os anjos e a alma humana . coisas perfeitas,belas, imperecíveis. Todo o resto, destinado à degeneração e à corrupção,perecível, só podia ter sido criado por um poder maligno oposto a Deus. Ora, se santo Agostinho admitisse que Noé deixara fora da arca certo número de espécies de animais, os maniqueístas aproveitar-seiam imediatamente disso para corroborar suas idéias de que essas espécies não haviam saído das mãos do Criador e que teriam morrido juntamente com os pecadores, afogadas pelo dilúvio. A segunda razão,e a mais importante, era que as espécies de animais levadas por Noé simbolizavam os povos da Terra: todas as nações tinham o direito de encontrar a salvação na nova arca representada pela Igreja cristã. Noé teve que transportar casais de todas as espécies, mesmo das aquáticas e das nascidas por geração espontânea, para simbolizar que nenhum povo, por menor e mais insignificante que pudesse parecer, seria deixado fora da Igreja, justamente cognominada de católica (termo que em grego significa para todos universal).


O traducianismo biogeográfico de santo Agostinho e o
problema das barreiras à livre dispersão


Uma vez isso resolvido, tem-se que enfrentar um problema decorrente: como podem animais que não conseguem atravessar grandes extensões de mares, por não serem capazes de voar ou nadar, povoar as ilhas oceânicas e talvez outros continentes distantes do Velho Mundo? Este problema, o das .barreiras à livre dispersão., preocupou sempre os biogeógrafos dispersionistas ou traducianistas, e santo Agostinho foi o primeiro a tentar solucioná-lo. Ainda em A cidade de Deus . no capítulo intitulado .Questão acerca das ilhas remotas, se elas receberam sua fauna a partir dos animais que foram preservados na arca durante o dilúvio. ., concluiu que os animais que sabiam nadar ou voar passaram às ilhas por seus próprios meios. Os que tinham alguma utilidade para os homens (na caça, na agricultura etc.) foram por estes transportados em canoas. A grande maioria das espécies, contudo, não se enquadra em nenhuma dessas duas categorias; para elas, o grande doutor da Igreja só teria visto uma solução: .Não se pode negar que, pela intervenção dos anjos, esses seres (os animais) tenham sido transferidos (para as ilhas oceânicas remotas) pela ordem ou permissão de Deus.. Santo Agostinho postulava assim, pela primeira vez, agentes externos que promoviam a dispersão a longas distâncias dos animais, .saltando. barreiras naturais. Essa solução é recorrente na literatura raducianista; vamos encontrá-la, só para citar alguns autores, em Lineu (1744), De Candolle (1821) e Charles Darwin (1859).


A questão dos antípodas


Aristóteles havia explicado, em Meteorologica, que a Terra era vidida em cinco zonas climáticas latitudinais . duas glaciais, próximas aos pólos, duas temperadas, e uma zona média tórrida, situada no equador, tão quente e sáfara que não possuía nem águas nem pastagens. Assim, as duas zonas temperadas (norte e sul), aptas para serem habitadas, não podiam ter comunicação alguma entre si,
inexoravelmente separadas pela zona tórrida. Endossando a opinião
de outros sábios gregos, Aristóteles acreditava que havia também terras no hemisfério sul do globo terrestre, o que garantia certa simetria e o próprio equilíbrio de nosso planeta. Seriam essas terras do hemisfério sul habitadas por homens e animais? É coisa com que os antigos não chegaram a se preocupar, pelo que consta.Santo Agostinho, que aceitava a esfericidade da Terra, combateu a idéia de que homens pudessem viver do lado oposto do mundo, dizendo que .não falam as Escrituras de tais descendentes de Adão.. Para ele, Deus não permitiria que ali vivessem, pois não teriam acesso ao cristianismo. Como poderiam os apóstolos de Cristo (que viera aomundo no hemisfério norte) atravessar a zona tórrida para chegar a
esses antípodas, a fim de levar-lhes a luz do Evangelho? Pois estava
escrito: .A sua voz estende-se por toda a Terra e suas palavras até as extremidades do mundo. (Salmo 18: 5), observação reiterada no Novo Testamento (Epístola aos Romanos 10: 18): .Por toda a Terra se espalhou a sua voz e até a extremidade da Terra chegaram suas palavras. O bispo de Hipona desenvolveu assim sua recusa em aceitar a existência de populações humanas no hemisfério sul, tendo como
premissa a leitura dos textos sagrados. Para santo Agostinho, se todos os povos da terra descendiam de Adão, através dos filhos de Noé; se todas as raças provinham de Babel; se os apóstolos foram enviados a pregar a palavra de Deus a todos os povos sem exceção (povos simbolizados pelas espécies de animais salvas na arca de Noé); se não há no Novo Testamento notícia alguma de que os apóstolos tenham ido pregar para os antípodas; se o Mar Oceano (o Atlântico) é impossível de ser navegado; se qualquer ser material é literalmente incinerado ao passar pela zona tórrida do globo; então só se pode chegar a uma única conclusão verdadeira: não pode haver seres humanos no lado oposto da Terra (supondo-se, obviamente, que a Terra tenha um lado oposto!).Raciocínio semelhante poderia ser feito em relação aos animais. Para chegarem ao hemisfério sul, aqueles animais que não possuem meios próprios para ultrapassar barreiras geográficas, e mesmo os que podem voar ou nadar (no caso de distâncias muito grandes), teriam que ser transportados por anjos; mas a zona tórrida incinerá-los-ia inexoravelmente, uma vez que só os anjos podiam passar incólumes por ela, visto não serem materiais.
Conclui-se, necessariamente, por razões físicas e teológicas, que o
hemisfério sul tinha que ser desabitado. Houve uma única criação, no
Jardim do Éden: isto era indiscutível. Todos os animais e homens tinham que se dispersar a partir de um único ponto no hemisfério norte. E plantas, poderiam existir no hemisfério sul? Por esse tempo (e até muitos séculos depois) acreditava-se que as plantas eram originadas, em sua esmagadora maioria, por geração espontânea. Prova é que, quando Noé soltou a pomba da arca, esta trouxe de volta um ramo, que a tradição atribuiu erroneamente a uma oliveira. Como explicar, se o dilúvio havia sido universal, e se havia assolado a face do planeta, a existência dessa planta verdejante? Por nascerem espontaneamente, depois da baixa das águas do dilúvio... Por esta razão Deus não ordenara a Noé que levasse também plantas em sua arca, para salvá-las do cataclismo, por ser desnecessário.


O impacto da descoberta da fauna americana pelos europeus


A descoberta, pelos europeus, de animais e populações humanas no Novo Mundo, notadamente na América do Sul, foi o mais severo teste que a biogeografia traducianista de origem bíblica teve que arrostar. Esse fato obrigou os pensadores a formular novas hipóteses para imunizar a teoria. Um dos resultados mais espetaculares do ciclo dos descobrimentos em fins do século XV e início do XVI foi a derrocada da antiqüíssima idéia da zona tórrida. O périplo da África e o descobrimento do Brasil, essas esplêndidas realizações de Portugal, demonstraram a inexatidão desse conceito. Permitia que os animais oriundos da arca de Noé se dispersassem, a partir do Ararat, até chegar ao Novo Mundo. O problema era explicar como ali foram ter, e como puderam atravessar distâncias tão espantosas. A idéia ingênua de que anjos os tivessem ansportado não tinha voga. Explicações mais naturais precisavam ser encontradas. O acúmulo gradativo de informações sobre plantas e animais, publicadas por viajantes e cronistas que visitavam as plagas do novo mundo descoberto ou através de suas figuras surgidas na cartografia (George, 1969), acrescentou mais um problema para os traducianistas:
por que muitas espécies americanas eram tão distintas das do Velho Continente? Algumas (como os marsupiais, só para mencionar um exemplo) nem mesmo tinham qualquer semelhança com os animais do mundo antigo. Até as espécies marinhas (que supostamente podiam nadar e se deslocar do Velho ao Novo Continente) eram distintas das
da Europa, como já em 1504 notava Binot Paulmier de Gonneville (D.Avezac, 1869): .la mer poissoneuse: les espèces dissemblables de celles d. Europe. (o mar venenoso: as espécies dessemelhantes daquelas da Europa).


A imunização do traducianismo bíblico


Para salvar o traducianismo biogeográfico vigente, várias hipóteses
ad hoc foram propostas. A Atlântida, uma ponte entre o Velho e o Novo Mundo, através da qual poderiam ter passado a pé enxuto os animais descendentes dos indivíduos transportados por Noé, foi uma das soluções apresentadas, tendo essa ilha, entretanto, dimensões muito maiores do que se supunha. Foram adeptos dessa hipótese, entre outros, Girolamo Fracastoro (1530), Francisco López de Gómara (1553) e Agustín de Zárate (1555). A improcedência dessa hipótese foi brilhantemente demonstrada pelo genial jesuíta padre Joseph d.Acosta (1590), que a substituiu por um hipotético estreito (o então chamado estreito de Anian, mencionado por Marco Polo, hoje estreito de Bering) que permitiria aos animais (e homens) oriundos da Ásia passarem à América do Norte e desta continuarem sua dispersão rumo ao sul, até o cabo Horn (Browne, 1983; Papavero, 1991; Papavero, Llorente e Espinosa, 1995; Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997). Essa brilhante hipótese de D.Acosta persistiu até alguns anos atrás. Persistia, porém, o problema das diferenças morfológicas e do número sempre crescente de espécies que iam sendo descritas e por vezes registradas pelo traço dos viajantes e naturalistas.
Walter Raleigh (1614) aventou uma explicação simplesmente engenhosa para evitar esses óbices. Ponderou, inicialmente, que nem todas as espécies de animais conhecidas já nessa época poderiam ter cabido nas exíguas dimensões da arca. Para Raleigh, a questão estava em que, na arca, foram salvas apenas .as espécies originais, criadas por Deus no Jardim do Éden, na semana da Criação.. Estas eram poucas, e couberam facilmente na embarcação de Noé. Encalhada a arca no Ararat, e aberta sua porta, os animais começaram a emigrar a partir desse ponto, reproduzindo-se não só dentro de sua própria espécie, mas também hibridando e dando origem a novas espécies (combinações das primitivas criadas por Deus), que, por sua vez, também iriam se transformando à medida que se afastavam do centro de origem, por influência do meio, herdando esses caracteres adquiridos. Ora, quanto mais longe do Ararat, mais diferentes deveriam ser, pois teriam mais tempo para hibridar e .degenerar., o que era confirmado pelos relatos de naturalistas e viajantes na América do Sul . o ponto mais distante possível do Ararat, onde se encontravam animais espantosamente distintos, por vezes monstruosos, como capivaras, tamanduás, preguiças, marsupiais, tapires e assim por diante. Essa hipótese de Raleigh serviu de inspiração para o jesuíta Athanasius Kircher, que, em sua obra intitulada Arca Noë (1675), admitiu que o patriarca transportara apenas umas poucas espécies de vertebrados . os bissexuais de fecundação cruzada, praticamente só alguns mamíferos e aves. Não levara o patriarca nem aquáticos nem os que nasciam por geração espontânea (que eram a grande maioria). Havia assim espaço mais que suficiente na arca para todas as espécies de mamíferos e aves originalmente criadas por Deus, as únicas que incorreriam no perigo de se afogar. Dessas espécies haviam surgido todas as outras, por meio de .cópula promíscua. (hibridação) e de diferenciação ulterior por sua
exposição, no caminho da dispersão, a diferentes ambientes. Assim da
cópula promíscua do camelo com o pardo, surgira o .camelopardo. ou
girafa; do camelo com o pardal, o avestruz; do leão com o pardo, o
leopardo; do leão com a águia, o grifo etc. (Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997).


O criacionismo no século XVII


Entrementes, crescia assustadoramente o número das espécies novas assinaladas no Novo Mundo. As antigas idéias sobre hibridação de espécies animais iam sendo cada vez mais restritas a raros casos; híbridos interespecíficos, quando existiam, eram estéreis, o que chegou a invalidar as conjeturas de Raleigh e Kircher. Como explicar, pois, a imensa diversidade de formas animais encontrada nas Américas? E por que eram tão diferentes das do Velho Mundo? O pensador e diplomata francês Isaac de La Peyrère (1594-1676) discordou frontalmente do pensamento traducianista reinante, duvidando que os animais pudessem migrar tão amplamente como sugeria a filosofia corrente. Tudo isso se baseava ainda no pressuposto de que o dilúvio noético fora universal. Recorrendo à sua própria exegese de um trecho mais ou menos obscuro da Epístola aos Romanos (5: 12-14), que reza: .Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado neste mundo, e pelo pecado a morte, e assim passou a morte a todos os homens, (por aquele homem) no qual todos pereceram. Porque até a lei o pecado estava no mundo; porém, não havendo lei, o pecado não era imputado. Todavia, a morte reinou desde Adão até Moisés. Assim, mesmo sobre aqueles que não pecaram por uma transgressão semelhante à de Adão., La Peyrère especulou que o dilúvio não fora universal, interessando apenas a uma parte do Oriente Médio; que Adão não fora o antepassado de todos os homens, mas só dos judeus; que Adão fora precedido por muitas nações, que viveram na China, na América, na Groenlândia e no misterioso continente do Sul. Essas nações não foram destruídas pelo dilúvio. Publicou essas conjeturas em 1655 (Preadamitae sive Exercitatio supra versibus 12, 13 et 14 capiti V Epistolae D. Pauli ad Romanos, quibus indicantur primi hominem ante Adamum conditi). Inaugurou, para outros autores, uma nova era de hipóteses, ora destinadas a explicar a distribuição das espécies de animais nas distintas partes do mundo. Deus criara-as separada e simultaneamente, cada qual em sua própria região. Não houvera um único centro de origem e dispersão no Jardim do Éden; não fora necessário levar todas as espécies dentro da arca de Noé. Se na realidade existiram Noé e sua arca, o dilúvio foi um acontecimento local, no Oriente Médio. Em suma, Deus criara, desde o início, e simultaneamente, as .regiões biogeográficas., cada qual com suas espécies próprias. Entre outros, defenderam essas idéias Abraham van der Mijl (De Origine animalium et migratione populorum, 1667; traduzida pela primeira vez, para o francês, por Chiquieri et alii, 1998); um anônimo (De Diluvii universalitate dissertatio prolusoria, 1667; traduzida pela primeira vez, para o francês, por Chiquieri, 1999); Edward Stillingfleet (Origines sacrae, or a rational account of the growth of Christian Faith, 1662); Matthew Poole (Synopsis criticorum aliorumque Sacrae Scripturae interpretem, 1669); e Jean Le Clerc (Commentarii philologici et paraphrases in Veterum Testamentum, 1690-1731) (Papavero e Pujol-Luz, 1997). O criacionismo levaria vários autores, no século XIX, à formulação das .regiões biogeográficas. (Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets,1997).


Ulteriores progressos da biogeografia


Nos séculos XVIII e XX, sucederam-se várias teorias, criacionistas e traducianistas, que não podemos examinar neste curto espaço. Entre as traducianistas, situam-se as de Lineu (De telluris habitabilis incremento, 1744; Papavero e Pujol-Luz, 1999) e a de Buffon (1778; Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997), incluindo a de Darwin (proposta em A origem das espécies, 1859). No século XX, surgiria a revolucionária teoria da biogeografia por vicariância, a maior revolução já ocorrida dentro dessa ciência. O mito da natureza intocada A paciente e continuada tarefa de inventariar as espécies vivas não só gradualmente contribuiu para testar e/ou reformular as diversas teorias biogeográficas e evolutivas, mas mostrou igualmente os padrões geográficos (regiões e sub-regiões) formados pelas espécies. Neste último domínio, uma importantíssima contribuição dada pelos viajantes naturalistas, em geral pouco apreciada e utilizada, mas de suma importância para o estudo da biogeografia de certos grupos de vertebrados, é mostrar o quão alterada, por ação antrópica, se encontra a distribuição de certas espécies. Este fato foi amplamente demonstrado por Teixeira (2000). Diz ele que, embora sujeita a diversas premissas, a documentação produzida durante o período da dominação holandesa (idem, 1992, 1993, 1995, 1997, 1998a-d) sem dúvida alguma fornece um quadro privilegiado da avifauna brasileira durante o século XVII. As 156 espécies silvestres nativas assinaladas equivalem a nada menos de 32,50% das 480 aves registradas para Pernambuco e a 46,15% das 338 aves mencionadas para a Paraíba (Farias, Brito e Pacheco, 1999; Schulz Neto, 1995). No caso do nordeste extremo do país, tal circunstância se reveste de particular interesse em face da destruição em grande escala das paisagens naturais observada na região, processo sem paralelo até mesmo na derrocada das matas atlânticas meridionais (Dean, 1996). Em nenhuma outra parte do Brasil a dura promessa de uma ocupação desregrada do espaço natural foi cumprida de forma tão absoluta, estando o Nordeste refém de uma monocultura de exportação que se mostrou capaz de erradicar as formações florestais e de alterar profundamente as paisagens mais secas do interior. A julgar pelos comentários de Schubart (1938), os 148.054km2 de matas. antes encontrados no nordeste extremo do Brasil estavam reduzidos, no ano de 1934, a meros 50.527km2 (34,12% da área original), dos quais 27.234km2 pertenciam ao Ceará (42,78% da área original), 6.361km2 ao Rio Grande do Norte (47,18% da área original), 462km2 à Paraíba (2,24% da área original), 13.759km2 a Pernambuco (41% da área original), 2.689km2 a Alagoas (34,69% da área original), e 22km2 a Sergipe (0,24% da área original). Com a mecanização da lavoura introduzida por volta da década de 1960, a agroindústria açucareira terminaria por ocupar todos os terrenos planos disponíveis,inclusive
os .tabuleiros. que haviam logrado subsistir. O derradeiro golpe seria desferido por volta de 1979, graças à implantação de um programa governamental para a produção de álcool combustível em larga escala, iniciativa que desdobrou as plantações de cana-de-açúcar rumo às áreas montanhosas e ao sertão. Entre 1981 e 1983, a destruição da zona da mata nordestina assumiria proporções catastróficas com a erradicação quase completa das florestas regionais e a perda de grande parte das áreas de transição observadas entre os ambientes florestais e as outras formações (Projeto Radam-Brasil, 1981a, 1981b, 1983). Nesse período, os 48.611km2 de matas antes existentes do Ceará a Sergipe estavam reduzidos a inacreditáveis 98km2 (0,20% da área original), enquanto que os 77.907km2 de ecótonos mal chegavam a 36.981km2 (47,46% da área original). Nos dias de hoje, a paisagem regional oscila entre um ininterrupto cinturão de canaviais costeiros e os degradados carrascos que substituíram boa parte da caatinga primitiva (Coimbra-Filho e Câmara, 1996). Ao contrário do observado em algumas outras partes do Brasil, o desbarato das paisagens naturais nordestinas não foi acompanhado de estudos sobre a fauna local, pois a região parece ter despertado muito pouco entusiasmo nos naturalistas viajantes que percorreram o país a partir do século XVIII. Mesmo que deixem muito a desejar, as notícias sobre a fauna nordestina tornam-se ainda mais escassas pela crônica dificuldade de os zoólogos . e particularmente os ornitólogos . conhecerem e utilizarem uma vasta bibliografia estranha às ciências naturais que, no entanto, abriga numerosas referências relativas aos animais brasileiros. Dedicado a relatos descritivos de caráter geográfico, etnográfico ou histórico, tal descaso muitas vezes termina por descartar informações bastante significativas, inclusive descobertas inusitadas sobre a distribuição original das mais variadas espécies. Apenas a título de
exemplo, cabe mencionar que a Chorographia da provincia da Parahyba de 1859 (Rohan, 1911) e o Esboço fisiográfico do Ceará de 1916 (Sobrinho, 1962) reconhecem a presença da arara-canindé, Ara ararauna, de .araras-vermelhas., Ara chloroptera e/ou Ara macao, e de uma .arara-azul. ou .arara-preta., nitidamente um representante do gênero Anodorhynchus. Afirmação surpreendente tendo em vista que o único representante do gênero assinalado para o nordeste extremo do Brasil, Anodorhynchus leari Bonaparte, 1856, hoje se encontra restrito a duas ou três áreas isoladas do baixo rio São Francisco, tendo sido descoberto em liberdade apenas em 1978 (Sick e Teixeira, 1980). A julgar por essas e outras fontes, os domínios de Anodorhynchus leari poderiam abarcar um território muito mais extenso, devendo o atual padrão ser imputado antes a fatores históricos associados a uma intensa ação antrópica que a qualquer determinismo ecológico. Nesse mesmo sentido, tampouco o mutum, Mitu mitu, deve ser considerado um táxon endêmico da floresta ombrófila densa, pois os relatos disponíveis demonstram que essa ave, atualmente extinta e conhecida de apenas dois exemplares oriundos de São Miguel dos Campos, Alagoas, na verdade habitava uma área geográfica bem mais ampla, havendo notícias fidedignas de sua ocorrência em pelo menos vinte localidades distintas entre Pernambuco e Alagoas. Ao contrário de seus predecessores, os zoólogos do século XX parecem dispensar aos relatos de antigos naturalistas o mesmo descaso dedicado às publicações estranhas às ciências naturais. Por não constituir exceção à regra, as observações reunidas durante o período da dominação holandesa do Brasil sempre foram objeto de grande cautela, mesmo que a realidade dos fatos, pouco a pouco, se encarregasse de comprovar sua veracidade. À guisa de exemplo, vale notar que as assertivas sobre a ausência do ferreiro (Procnias averano) no Nordeste do Brasil viramse refutadas apenas com a coleta dos primeiros exemplares na década de 1920 (Hellmayr, 1929), enquanto que todas as referências ao mutum (Mitu mitu) permaneceram sendo atribuídas a um exemplar de cativeiro .trazido do Maranhão. (apud Hellmayr e Conover, 1942) até a inesperada redescoberta da espécie na década de 1950 (Pinto, 1952), isso sem contarmos que a presença do periquito verde (Brotogeris tirica) na região seria reconhecida apenas com a obtenção dos primeiros exemplares em 1984 (Teixeira, Nacinovic e Tavares, 1986), apesar do lúcido relato de Marcgrave (1658) e mesmo das ilustrações dos libri picturati (Pinto, 1978, 1942). De certa forma, tais circunstâncias conferem um novo aspecto aos casos em que semelhante comprovação não pode ser alcançada, conforme ocorre com as referências relativas à guaruba (Aratinga guarouba), e ao enigmático .mituporanga. (Crax fasciolata), que era conhecido da população local e parece ter desaparecido das matas nordestinas por volta da década de 1930 (Teixeira, Nacinovic e Pontual, 1987). Contudo, o exemplo mais recente e espetacular de que os antigos relatos seiscentistas não devem ser vistos com escárnio diz respeito aos mamíferos, pois Callicebus coimbrai,descrito em 1999 por Kobayashi e Langguth, não passa do mesmo cagui relacionado por Marcgrave (op. cit.) e completamente esquecido pelos autores contemporâneos (Hershkovitz, 1988, 1990). Tal achado constitui um exemplo primoroso das dificuldades que cercam a análise de antigos documentos relativos ao mundo natural, pois esse primata parece ter sido descoberto já no limiar da extinção, sobrevivendo apenas em alguns dos raros remanescentes florestais localizados no litoral de Sergipe (Projeto Radam-Brasil, 1983). Bastaria, portanto, eliminar essas poucas matas residuais para que a espécie desaparecesse e os registros do século XVII a seu respeito passassem ser atribuídos, com toda probabilidade, a um exemplar cativo trazido de outra parte do país, pois não existiriam provas concretas de que tais macacos ocorressem na região. Afirmativa capaz de ganhar foros de verdade incontestável caso houvesse uma hipótese biogeográfica qualquer que não contemplasse ou proibisse semelhante possibilidade. De fato, não deixa de ser oportuno constatar que o desairoso papel reservado pela maioria dos contemporâneos aos antigos relatos também se estenda a antigos exemplares zoológicos coletados muito além de sua tradicional área de ocorrência. Em vez de despertar a curiosidade e a inquietação dos interessados, tais espécimens são comumente atribuídos a .erros de rotulagem. ou simplesmente esquecidos em uma das periódicas e convenientes crises de amnésia observadas em determinados círculos. Este parece ter sido o destino reservado a parte do material reunido por C. A. Craven em Pernambuco durante o último quartel do século XIX, pois essa coleção inclui algumas aves amazônicas, como Aratinga weddellii e Malacoptila rufa, que jamais voltaram a ser assinaladas para o Nordeste do Brasil (Salvadori, 1891; Sclater e Shelley, 1891). O mesmo ocorre nas mais diversas partes do mundo com viajantes e/ou coletores de maior prestígio, conforme atesta o limbo ao qual foi relegado o enigmático Megapodidae da Nova Caledônia, assinalado durante a segunda viagem do capitão Cook. Ovos atribuídos a essas aves foram enviados ao British Museum (Natural History) e até mesmo basearam a descrição de uma nova espécie, que terminaria sendo ignorada posteriormente por contrariar as idéias já estabelecidas sobre a distribuição do grupo (Balouet e Olson, 1989; Olson, 1990). Encarados com reservas na primeira metade do século XX, os relatos antigos terminariam por desaparecer por completo das publicações ornitológicas mais recentes, que parecem desconhecer até mesmo registros dos últimos cem anos já consagrados na literatura especializada. No mais das vezes, uma restrição cada vez maior das fontes bibliográficas redundaria em conclusões bastante esdrúxulas sobre a área de ocorrência original de diversas espécies, propiciando a montagem de verdadeiros artefatos amostrais destinados a exercer forte influência sobre estudos biogeográficos e ecológicos. De acordo com algumas análises disponíveis, a anhuma (Anhima cornuta) não teria sido assinalada para o Nordeste do Brasil (apud Hoyo et alii, 1992) e habitaria apenas os .brejos de água doce. (Stotz et alii, 1996) . assertiva das mais peculiares, tendo em vista tratar-se de uma ave encontrada em diversos tipos de paisagens alagadas, descrita a partir do texto de Marcgrave (1648) e de outros autores da época, motivo que levaria o Nordeste do Brasil a ser escolhido como a localidade-tipo da espécie (Hellmayr, 1908). Entre vários outros exemplos, algo semelhante seria mencionado para o arapapá (Cochlearius cochlearius) (Hoyo et alii, op. cit.; Hancock e Kushlan, 1984), a marreca-ananaí (Amazonetta brasiliensis), e a marreca-toucinho (Anas bahamensis) (Hoyo et alii, op. cit.; Madge e
Burn, 1988), além de diversos psitácidas como a arara-canindé (Ara ararauna), e as araras-vermelhas (Ara macao e/ou Ara chloroptera).Na verdade, o motivo que levaria determinadas fontes (Hoyo et alii, 1997; Juniper e Parr, 1998) a considerar certos representantes do gênero Ara como aves jamais assinaladas para o nordeste extremo do Brasil constitui um autêntico enigma, haja vista que a descrição de Ara ararauna se encontra parcialmente baseada no relato de Marcgrave (op. cit.) e que Pernambuco foi designado como localidade-tipo da espécie desde o começo do século (Hellmayr, 1906). Não chega a causar grande comoção, portanto, a risível afirmativa de que o .primeiro. registro de Ara chloroptera para os domínios da caatinga teria sido levado a cabo no Piauí entre 1987 e 1991 (apud Olmos, 1997). Ainda que possa parecer desalentadora, a existência de erros grosseiros não deveria constituir uma novidade em si, pois estabelecer a verdadeira área de ocorrência das diferentes espécies animais constitui tarefa muito mais complexa e trabalhosa do que supõe a grande maioria. Na realidade, mudanças climáticas e outros fenômenos da mesma magnitude estão longe de representar os únicos fatores envolvidos, já que profundas alterações no mundo natural, desencadeadas por ações antrópicas ao longo da trajetória da humanidade, não podem ser desprezadas. Constitui grande surpresa,contudo, que a maioria dos autores empenhados no estudo dabiogeografia silencie sobre o assunto, pois tal lacuna muitas vezesse confunde com uma aceitação tácita de que a distribuição dos animais na superfície do globo teria permanecido essencialmente a mesma durante o período de estabilidade climática observado nos últimos dez mil anos, regra quebrada apenas pela indefectível .perda de biodiversidade. contemporânea. Esta parece ser, de fato, a opinião de uma parcela bastante significativa dos biólogos contemporâneos, apesar de não faltarem evidências de que há muito o homem vem exercendo sua capacidade de promover grandes mudanças na composição das comunidades animais e na própria paisagem de amplos espaços geográficos. Na verdade, o exame de depósitos datados de 2300 a 576 a. C. apontam que Antigua, uma das Pequenas Antilhas, teria perdido, pouco a pouco, várias de suas espécies de mamíferos, aves e répteis pela ocupação humana, processo aparentemente generalizado entre as ilhas do Caribe (MacPhee e Flemming, 1999; MacPhee, Flemming e Lunde, 1999; Reis e Steadman, 1999; Steadman, Pregill e Olson, 1984). Outros indícios sugerem que as primeiras populações indígenas poderiam ter realizado translocações e/ou introduções de aves e mamíferos de importância econômica entre as diferentes ilhas ou até mesmo com o continente (Olson, 1982). Todavia, as informações mais conclusivas nesse sentido dizem respeito às ilhas do Pacífico, pois os estudos levados a cabo no Havaí indicam que parte considerável da avifauna local e dos próprios ambientes de baixada já havia sido dizimada pelos polinésios bem antes da chegada dos europeus, os quais tiveram a oportunidade de registrar apenas uma fração dos animais e plantas antes encontrados no arquipélago. Ao que parece, 50% da avifauna das ilhas havaianas teria desaparecido, percentual capaz de atingir 69% no caso de Ohau e 71% no de Maui. Pelos mesmos motivos, a Nova Zelândia teria perdido 46% de suas aves, a Nova Caledônia pelo menos 40% dos nonpasseres; as Marquesas, entre 55% e 69% da avifauna nativa, conforme a ilha considerada, a ilha de Huahinea, 78% e a de Mangaia, 80%. Os efeitos dessa derrocada atingiriam os rincões mais remotos do Pacífico Sul, pois até mesmo a ilha Henderson, tida como deserta desde sua descoberta em 1606, perdeu 43% da avifauna nativa, após ter sido colonizada e abandonada pelos polinésios entre os séculos XII e XV. Além de alterar profundamente a distribuição das aves que lograram sobreviver, o processo de ocupação humana do Pacífico eliminaria por completo grupos inteiros entre os Threskiornithidae, Anatidae, Megapodidae, Rallidae etc., estando os representantes incapazes de voar entre os primeiros a ser riscados do mapa, conforme demonstra o caso clássico das cerca de 12 espécies de moas (Dinornithiformes) antes conhecidas da Nova Zelândia. Como um todo, estima-se que mais de duas mil espécies de aves podem ter sido extintas nas ilhas do Pacífico tropical graças à ação antrópica, cifra espantosa que representa 20% do total de espécies de aves existentes no planeta. Por não levar em conta esse quadro, parcela razoável dos estudos referentes à sistemática, evolução e ecologia das aves encontradas nas ilhas do Pacífico teria sido induzida a sérios erros ou revelar-se-ia um mero desperdício de esforço (Athens, Kaschko e James, 1991; Balouet e Olson, 1989; James e Olson, 1983; James et alii, 1987; Olson, 1990, 1989; Olson e James, 1984, 1982; Steadman, 1995, 1989, 1985; Steadman e Olson, 1985). As profundas alterações no mundo natural promovidas pelas ações antrópicas dos últimos seis mil anos não estiveram restritas aos frágeis ambientes insulares, embora sua ação em grandes massas continentais usualmente assuma aspectos bastante complexos e se revele bem mais difícil de comprovar em face da própria extensão do espaço geográfico envolvido. Entre os vários exemplos nesse sentido, talvez um dos mais notáveis seja conferido pelas pesquisas de Bodenheimer (1960) acerca dos animais do Egito e do Oriente Médio, estudos que terminaram por desenhar uma fauna muito diversa da atual e até mesmo daquela registrada durante a alta Idade Média. Apenas à guisa de ilustração, vale comentar que os tigres (Panthera tigris)(Lineu, 1758) sobreviveram nas vizinhanças do mar Cáspio pelo menos até 300 a. C., ao passo que os leões (Panthera leo) (Lineu, 1758) desapareceram do Iraque apenas no século XIX. Hoje restrita ao Paquistão, Índia e Bangladesh, a cervicapra (Antilope cervicapra) Lineu, 1758) chegou a ser comum na Mesopotâmia, enquanto que o elefante indiano (Elephas maximus) (Lineu, 1758) ainda ocorria no alto Eufrates e talvez também em Antióquia, até 1000 a. C. Encontrados nos dias de hoje apenas ao sul do Saara, a girafa (Giraffa camelopardalis) (Lineu, 1758), o hartebeest (Alcelaphus busephalus) (Pallas, 1776) e o licaonte (Lycaon pictus) (Temminck, 1820) existiram no Egito até o final do período pré-dinástico (3100 a. C.), cabendo notar que esse último chegou mesmo a ser domesticado para a caça de gazelas e antílopes. Além de mover uma perseguição sem trégua aos elefantes do Norte da África após as guerras Púnicas (264-146 a.C.) (Toynbee, 1973), os romanos quase exterminaram os hipopótamos por causa dos grandes prejuízos causados às plantações nas margens do Nilo, um dos motivos que levaria esse mamífero a ser erradicado da região por volta do século XII. Os ouriços (Atelerix algirus) (Lereboullet, 1842), as civetas (Viverra civetta) (Schreber, 1776), certas gazelas (Gazella spp.), um gavião (Melierax gabar) (Daudin, 1800), o waldrapp (Geronticus eremita) (Lineu, 1758) e o crocodilo (Crocodilus niloticus) (Laurenti, 1768) teriam sido extintos do Egito antes do século XVIII, enquanto que o orix (Oryx gazella) (Lineu, 1758), o addax (Addax nasomaculatus) (Blainville, 1816), o avestruz (Struthio camelus) e o íbis sagrado (Threskiornis aethiopicus) (Latham, 1790) perdurariam até o começo do século XIX.
Por não recuar tanto no tempo quanto a grande maioria dos casos anteriores, as fontes históricas disponíveis sobre o Nordeste do Brasil constituem prova eloqüente de que alterações muito significativas na composição e distribuição dos animais podem acontecer no intervalo de apenas algumas centenas de anos. Com efeito, o material produzido durante o domínio holandês e outros relatos dos séculos XVII e XVIII configuram uma realidade bastante diversa da atual, que se encontra caracterizada por uma ausência quase completa de paisagens florestais, formações interioranas cada vez mais áridas e terrenos alagados em franca retração. Não deve causar surpresa, portanto, que grande parte das espécies das matas secas ou úmidas do Nordeste tenha sido extinta ou caminhe a passos largos para a extinção, enquanto que várias das aves aquáticas desapareceram ou se tornaram tão raras que a combalida literatura ornitológica contemporânea não encontra grande dificuldade em desconhecer os antigos registros existentes. A exemplo de outras áreas sob intensa ocupação humana, observase uma acentuada perda das espécies de maior porte, processo marcado pela desaparição completa, ou quase completa, das emas (Rhea americana), jaburus (Jabiru mycteria), anhumas (Anhima cornuta), araras (Ara spp.), grandes gaviões (Accipitridae) etc. (Teixeira et alii, 1986). A mesma tendência ocorreria em relação aos mamíferos, pois os últimos estudos sobre esse grupo zoológico levados a cabo na região primam pela ausência de qualquer alusão às antas (Tapirus terrestris) (Lineu, 1758), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), e várias outras espécies assinaladas durante o domínio holandês, enquanto certos táxons, como a onça-pintada (Panthera onca), são mencionados apenas de forma muito condicional (Eisemberg e Redford, 1999; Mares, Willig e Lacher, 1985; Mares, Willig, Streilen et al., 1981; Willig e Mares, 1989). Na verdade, a atual distribuição de Anodorhynchus leari, Cyanopsitta spixii e de várias outras aves deve ser entendida como um artefato de origem antrópica que pouca semelhança guarda com a provável área de ocorrência da espécie há alguns poucos séculos, fenômeno também observado em relação a diversos mamíferos nordestinos como Allouata belzebul (Lineu, 1766) (Coimbra-Filho e Câmara, 1996; Langguth et alii, 1987). Por conseguinte, tampouco parece necessário recuar ao pleistoceno para explicar a propalada .falta de adaptação. da fauna local às condições de aridez (apud Mares, Willig e Lacher, op. cit.; Mares, Willig, Streilen et al., op. cit.; Vivo, 1997), pois semelhante paradoxo talvez derive apenas de a caatinga ter sido uma paisagem bem mais arbórea e muito menos árida em um passado nada remoto (Coimbra-Filho e Câmara, op. cit.). Por outro lado, as fontes históricas propõem alguns problemas que podem nunca vir a ser resolvidos de forma satisfatória, conforme demonstra a discussão sobre a possível ocorrência de aves como o guará (Eudocimus ruber) e a guaruba (Aratinga guarouba) no Nordeste do país. No entanto, os indícios mais intrigantes dizem respeito a eventuais espécies extintas que jamais chegaram a ser descritas ou cuja existência vem sendo objeto de acirradas controvérsias, como talvez seja o caso de alguns psitácidas. Nesse particular, o exemplo do tucana de Marcgrave (1648) revela-se curioso ao extremo, pois a sucinta descrição disponível parece não corresponder a nenhum Ramphastidae conhecido, embora guarde certa semelhança com um estranho araçari de
procedência ignorada, retratado na Coleção Niedenthal. A questão tornase ainda mais complexa pelo fato de essas ilustrações estarem claramente baseadas em uma ave viva e também representarem um exemplar de Pteroglossus aracari, espécie muito comum no Nordeste do Brasil, várias vezes figurada pelos holandeses. O pressuposto de que a distribuição de numerosos animais pode ter sofrido profundas alterações durante os últimos séculos apresenta sérios reflexos em termos de nossa visão do mundo natural. Por conseguinte, boa parte dos padrões observados nos espaços geográficos que sofreram uma influência antrópica de certa magnitude deve ser entendida comoum artefato construído pelo homem em um período relativamente curto,em vez de representar a expressão de fenômenos .naturais. observados ao longo do processo evolutivo. Como esse fenômeno costuma produzir áreas de ocorrência que pouca semelhança guardam com as originais, a
tentativa de basear hipóteses de sistemática, evolução e ecologia apenas nos registros atuais revela-se no mínimo temerária, sobretudo tendo em vista que mesmo os locais mais remotos do planeta podem reservar surpresas bastante inesperadas quanto a uma antiga e insuspeita ocupação humana. No que diz respeito ao nordeste extremo do Brasil e a outras regiões que perderam grande parte de suas paisagens naturais, a existência de padrões .artificiais. deve constituir antes a regra do que a exceção, com o agravante de que ocorrências relituais podem ser facilmente alteradas a curtíssimo prazo por fatores tão variados e imponderáveis como a cobiça de um proprietário, um incêndio acidental ou mesmo um simples gato faminto. Não parece impossível, portanto, supor que diversas áreas isoladas com um alto número de endemismos não passem de meros artefatos, em lugar de representar o produto de intricados fenômenos evolutivos, ou que a ação antrópica possa produzir numerosos casos de alopatria entre táxons aparentados, os quais constituiriam exemplos perfeitos para a demonstração do .princípio da exclusão competitiva. (Gause apud Lincoln et alii, 1984) e/ou do conceito de .espécie geográfica. ou .superespécie. (Haffer, 1974; Mayr, 1969) se não tivessem sido criados pelo homem há poucos séculos. Conforme mencionado por Olson (1990), a hipótese biogeográfica proposta por MacArthur e Wilson (1967) viu-se bastante abalada pela descoberta de que o modelo utilizado, a avifauna das ilhas do Pacífico, sofreu forte influência dos polinésios, que alteraram sobremaneira a distribuição original de várias espécies e promoveram uma autêntica extinção em massa muito antes da chegada dos primeiros exploradores europeus. Nesse mesmo sentido, as observações de Teixeira et alii (1986) sobre as matas nordestinas abrigarem uma avifauna típica das terras altas e outra das baixadas costeiras devem ser encaradas com grande suspeita, pois nada impediria que semelhante padrão resultasse dos azares de uma intensa ação antrópica sobre um número muito limitado de remanescentes florestais, os quais lograram subsistir exatamente por estarem situados em áreas de difícil acesso, como as vertentes mais íngremes das serras e os estreitos vales encaixados típicos dos tabuleiros litorâneos. De fato, algumas espécies conhecidas apenas das matas de altitude (p. ex., Terenura sicki Teixeira e Gonzaga, 1983, Procniasnudicollis e Iodopleura leucopygia Salvin, 1885) terminariam sendo assinaladas em terrenos mais baixos (Almeida e Teixeira, 1997; Teixeira, 1987; Teixeira et alii, 1990), enquanto que a tradição oral, velhos registros e a própria toponímia da região registram a presença de Mitu mitu e outras aves supostamente próprias das florestas litorâneas para áreas mais altas (Teixeira e Papavero, 1999). Na verdade, mesmo a simples tentativa de estabelecer a área de ocorrência original de uma dada espécie pode representar uma tarefa bem mais complexa e trabalhosa do que supõe a grande maioria dos autores atuais (Bibby et alii, 1992; Wege e Long, 1995). Além de conferir maior nitidez à importância de estudos capazes de integrar acervos zoológicos com fontes históricas, etnográficas e arqueológicas, a existência de padrões de distribuição absolutamente
.artificiais. lança sérias dúvidas sobre determinados aspectos relativos à conservação da diversidade biológica do planeta. Mais do que preservar a diversidade remanescente, boa parte das iniciativas atuais pretende garantir a continuidade de uma suposta herança .natural. que, ao menos em alguns casos, possui apenas alguns séculos de existência. Semelhante paradoxo pode levar às mais curiosas deformações em termos das prioridades e políticas a serem adotadas, conduzindo muitas vezes a ações inócuas ou destinadas ao fracasso, por contemplarem apenas aspectos tópicos e/ou cometerem sérios erros de premissa. Considerando o elevado prestígio que o mercado persa da conservação atribui às áreas jamais tocadas pelo homem e aos pretensos .refúgios ancestrais., parece bem mais provável que a existência desses artefatos seja ignorada como uma simples inconveniência, produto de métodos pouco ortodoxos que utilizam velhos documentos e outras fontes pouco convencionais para obter resultados discutíveis. Nesse sentido, não deixa de ser curiosa a constatação de que as restrições cada vez maiores impostas à coleta de espécimens zoológicos vêm reduzindo a ornitologia contemporânea a um somatório de relatos bem inferior aos dos séculos XVII e XVIII, pois as listagens produzidas sequer contêm elementos descritivos que permitam submeter a identidade das espécies assinaladas a qualquer tipo de teste. Por último, cumpre reconhecer que a ocorrência de tais artefatos pode ser de difícil aceitação por motivos bem menos mundanos, entre os quais se destaca o perpétuo fascínio exercido pelo mundo natural sobre uma humanidade cada vez mais citadina. Não constituindo em absoluto um fenômeno recente (Schama, 1996), essa atração quase sempre reflete o sonho libertário que identifica a paisagem natural, seja ela silvestre ou pastoril, com a nostalgia de uma Idade de Ouro imaginária e fabulosa, a fuga de uma realidade social sombria ou a reconquista de uma promessa de grandeza capaz de afastar o peso insuportável de um cotidiano de pequenas mazelas. No entanto, esse sentimento carrega uma pesada carga de ambigüidade, pois o verdadeiro mundo natural, feito de silêncio, caos e noite antiga, prossegue tão hostil e inóspito quanto na aurora dos tempos, maldição a ser combatida com todas as forças e todos os meios, por mais que os discursos vigentes afirmem o contrário. Apenas sua derrota permitirá a plenitude do mito, pois é em torno desse adversário vencido e inerme que se consolida a visão idílica da paisagem natural como um autêntico jardim das delícias, fantasia construída sobre tristes remanescentes domesticados que variam entre a casa de campo, o bosque suburbano e o parque nacional. Ao macular uma natureza que se pretende intocada pela mão humana, a história passa a ser inimiga do mito e conduz a uma indesejada reflexão sobre o cunho utilitarista que sempre marcou as relações do Ocidente com o universo natural. Além de afastar qualquer sonho de remissão, esse perambular pelas trevas adquire contornos quase profanos, ao trazer do passado uma imagem tão inesperada e angustiante, frágil desenho composto de documentos esfacelados, frases incompletas e velhas figuras, farrapos de uma memória cada vez mais gasta e débil, último refúgio de um mundo que não mais existe sob o sol. Estranho oráculo esse, cuja indizível crueldade condena à renovada lembrança de florestas sem fim e do grito das aves a escurecer o céu em um perdido dia de glória.


Nelson Papavero
Professor visitante do Museu Paraense Emílio Goeldi e
professor colaborador do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Av. Perimetral, Caixa Postal 399
66040-170 Belém do Pará . PA Brasil
Dante Martins Teixeira
Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro,
Quinta da Boa Vista
20940-040 Rio de Janeiro . RJ Brasil