Nos séculos XVIII e XX, sucederam-se várias teorias, criacionistas e traducianistas, que não podemos examinar neste curto espaço. Entre as traducianistas, situam-se as de Lineu (De telluris habitabilis incremento, 1744; Papavero e Pujol-Luz, 1999) e a de Buffon (1778; Papavero, Teixeira e Llorente-Bousquets, 1997), incluindo a de Darwin (proposta em A origem das espécies, 1859). No século XX, surgiria a revolucionária teoria da biogeografia por vicariância, a maior revolução já ocorrida dentro dessa ciência. O mito da natureza intocada A paciente e continuada tarefa de inventariar as espécies vivas não só gradualmente contribuiu para testar e/ou reformular as diversas teorias biogeográficas e evolutivas, mas mostrou igualmente os padrões geográficos (regiões e sub-regiões) formados pelas espécies. Neste último domínio, uma importantíssima contribuição dada pelos viajantes naturalistas, em geral pouco apreciada e utilizada, mas de suma importância para o estudo da biogeografia de certos grupos de vertebrados, é mostrar o quão alterada, por ação antrópica, se encontra a distribuição de certas espécies. Este fato foi amplamente demonstrado por Teixeira (2000). Diz ele que, embora sujeita a diversas premissas, a documentação produzida durante o período da dominação holandesa (idem, 1992, 1993, 1995, 1997, 1998a-d) sem dúvida alguma fornece um quadro privilegiado da avifauna brasileira durante o século XVII. As 156 espécies silvestres nativas assinaladas equivalem a nada menos de 32,50% das 480 aves registradas para Pernambuco e a 46,15% das 338 aves mencionadas para a Paraíba (Farias, Brito e Pacheco, 1999; Schulz Neto, 1995). No caso do nordeste extremo do país, tal circunstância se reveste de particular interesse em face da destruição em grande escala das paisagens naturais observada na região, processo sem paralelo até mesmo na derrocada das matas atlânticas meridionais (Dean, 1996). Em nenhuma outra parte do Brasil a dura promessa de uma ocupação desregrada do espaço natural foi cumprida de forma tão absoluta, estando o Nordeste refém de uma monocultura de exportação que se mostrou capaz de erradicar as formações florestais e de alterar profundamente as paisagens mais secas do interior. A julgar pelos comentários de Schubart (1938), os 148.054km2 de matas. antes encontrados no nordeste extremo do Brasil estavam reduzidos, no ano de 1934, a meros 50.527km2 (34,12% da área original), dos quais 27.234km2 pertenciam ao Ceará (42,78% da área original), 6.361km2 ao Rio Grande do Norte (47,18% da área original), 462km2 à Paraíba (2,24% da área original), 13.759km2 a Pernambuco (41% da área original), 2.689km2 a Alagoas (34,69% da área original), e 22km2 a Sergipe (0,24% da área original). Com a mecanização da lavoura introduzida por volta da década de 1960, a agroindústria açucareira terminaria por ocupar todos os terrenos planos disponíveis,inclusive
os .tabuleiros. que haviam logrado subsistir. O derradeiro golpe seria desferido por volta de 1979, graças à implantação de um programa governamental para a produção de álcool combustível em larga escala, iniciativa que desdobrou as plantações de cana-de-açúcar rumo às áreas montanhosas e ao sertão. Entre 1981 e 1983, a destruição da zona da mata nordestina assumiria proporções catastróficas com a erradicação quase completa das florestas regionais e a perda de grande parte das áreas de transição observadas entre os ambientes florestais e as outras formações (Projeto Radam-Brasil, 1981a, 1981b, 1983). Nesse período, os 48.611km2 de matas antes existentes do Ceará a Sergipe estavam reduzidos a inacreditáveis 98km2 (0,20% da área original), enquanto que os 77.907km2 de ecótonos mal chegavam a 36.981km2 (47,46% da área original). Nos dias de hoje, a paisagem regional oscila entre um ininterrupto cinturão de canaviais costeiros e os degradados carrascos que substituíram boa parte da caatinga primitiva (Coimbra-Filho e Câmara, 1996). Ao contrário do observado em algumas outras partes do Brasil, o desbarato das paisagens naturais nordestinas não foi acompanhado de estudos sobre a fauna local, pois a região parece ter despertado muito pouco entusiasmo nos naturalistas viajantes que percorreram o país a partir do século XVIII. Mesmo que deixem muito a desejar, as notícias sobre a fauna nordestina tornam-se ainda mais escassas pela crônica dificuldade de os zoólogos . e particularmente os ornitólogos . conhecerem e utilizarem uma vasta bibliografia estranha às ciências naturais que, no entanto, abriga numerosas referências relativas aos animais brasileiros. Dedicado a relatos descritivos de caráter geográfico, etnográfico ou histórico, tal descaso muitas vezes termina por descartar informações bastante significativas, inclusive descobertas inusitadas sobre a distribuição original das mais variadas espécies. Apenas a título de
exemplo, cabe mencionar que a Chorographia da provincia da Parahyba de 1859 (Rohan, 1911) e o Esboço fisiográfico do Ceará de 1916 (Sobrinho, 1962) reconhecem a presença da arara-canindé, Ara ararauna, de .araras-vermelhas., Ara chloroptera e/ou Ara macao, e de uma .arara-azul. ou .arara-preta., nitidamente um representante do gênero Anodorhynchus. Afirmação surpreendente tendo em vista que o único representante do gênero assinalado para o nordeste extremo do Brasil, Anodorhynchus leari Bonaparte, 1856, hoje se encontra restrito a duas ou três áreas isoladas do baixo rio São Francisco, tendo sido descoberto em liberdade apenas em 1978 (Sick e Teixeira, 1980). A julgar por essas e outras fontes, os domínios de Anodorhynchus leari poderiam abarcar um território muito mais extenso, devendo o atual padrão ser imputado antes a fatores históricos associados a uma intensa ação antrópica que a qualquer determinismo ecológico. Nesse mesmo sentido, tampouco o mutum, Mitu mitu, deve ser considerado um táxon endêmico da floresta ombrófila densa, pois os relatos disponíveis demonstram que essa ave, atualmente extinta e conhecida de apenas dois exemplares oriundos de São Miguel dos Campos, Alagoas, na verdade habitava uma área geográfica bem mais ampla, havendo notícias fidedignas de sua ocorrência em pelo menos vinte localidades distintas entre Pernambuco e Alagoas. Ao contrário de seus predecessores, os zoólogos do século XX parecem dispensar aos relatos de antigos naturalistas o mesmo descaso dedicado às publicações estranhas às ciências naturais. Por não constituir exceção à regra, as observações reunidas durante o período da dominação holandesa do Brasil sempre foram objeto de grande cautela, mesmo que a realidade dos fatos, pouco a pouco, se encarregasse de comprovar sua veracidade. À guisa de exemplo, vale notar que as assertivas sobre a ausência do ferreiro (Procnias averano) no Nordeste do Brasil viramse refutadas apenas com a coleta dos primeiros exemplares na década de 1920 (Hellmayr, 1929), enquanto que todas as referências ao mutum (Mitu mitu) permaneceram sendo atribuídas a um exemplar de cativeiro .trazido do Maranhão. (apud Hellmayr e Conover, 1942) até a inesperada redescoberta da espécie na década de 1950 (Pinto, 1952), isso sem contarmos que a presença do periquito verde (Brotogeris tirica) na região seria reconhecida apenas com a obtenção dos primeiros exemplares em 1984 (Teixeira, Nacinovic e Tavares, 1986), apesar do lúcido relato de Marcgrave (1658) e mesmo das ilustrações dos libri picturati (Pinto, 1978, 1942). De certa forma, tais circunstâncias conferem um novo aspecto aos casos em que semelhante comprovação não pode ser alcançada, conforme ocorre com as referências relativas à guaruba (Aratinga guarouba), e ao enigmático .mituporanga. (Crax fasciolata), que era conhecido da população local e parece ter desaparecido das matas nordestinas por volta da década de 1930 (Teixeira, Nacinovic e Pontual, 1987). Contudo, o exemplo mais recente e espetacular de que os antigos relatos seiscentistas não devem ser vistos com escárnio diz respeito aos mamíferos, pois Callicebus coimbrai,descrito em 1999 por Kobayashi e Langguth, não passa do mesmo cagui relacionado por Marcgrave (op. cit.) e completamente esquecido pelos autores contemporâneos (Hershkovitz, 1988, 1990). Tal achado constitui um exemplo primoroso das dificuldades que cercam a análise de antigos documentos relativos ao mundo natural, pois esse primata parece ter sido descoberto já no limiar da extinção, sobrevivendo apenas em alguns dos raros remanescentes florestais localizados no litoral de Sergipe (Projeto Radam-Brasil, 1983). Bastaria, portanto, eliminar essas poucas matas residuais para que a espécie desaparecesse e os registros do século XVII a seu respeito passassem ser atribuídos, com toda probabilidade, a um exemplar cativo trazido de outra parte do país, pois não existiriam provas concretas de que tais macacos ocorressem na região. Afirmativa capaz de ganhar foros de verdade incontestável caso houvesse uma hipótese biogeográfica qualquer que não contemplasse ou proibisse semelhante possibilidade. De fato, não deixa de ser oportuno constatar que o desairoso papel reservado pela maioria dos contemporâneos aos antigos relatos também se estenda a antigos exemplares zoológicos coletados muito além de sua tradicional área de ocorrência. Em vez de despertar a curiosidade e a inquietação dos interessados, tais espécimens são comumente atribuídos a .erros de rotulagem. ou simplesmente esquecidos em uma das periódicas e convenientes crises de amnésia observadas em determinados círculos. Este parece ter sido o destino reservado a parte do material reunido por C. A. Craven em Pernambuco durante o último quartel do século XIX, pois essa coleção inclui algumas aves amazônicas, como Aratinga weddellii e Malacoptila rufa, que jamais voltaram a ser assinaladas para o Nordeste do Brasil (Salvadori, 1891; Sclater e Shelley, 1891). O mesmo ocorre nas mais diversas partes do mundo com viajantes e/ou coletores de maior prestígio, conforme atesta o limbo ao qual foi relegado o enigmático Megapodidae da Nova Caledônia, assinalado durante a segunda viagem do capitão Cook. Ovos atribuídos a essas aves foram enviados ao British Museum (Natural History) e até mesmo basearam a descrição de uma nova espécie, que terminaria sendo ignorada posteriormente por contrariar as idéias já estabelecidas sobre a distribuição do grupo (Balouet e Olson, 1989; Olson, 1990). Encarados com reservas na primeira metade do século XX, os relatos antigos terminariam por desaparecer por completo das publicações ornitológicas mais recentes, que parecem desconhecer até mesmo registros dos últimos cem anos já consagrados na literatura especializada. No mais das vezes, uma restrição cada vez maior das fontes bibliográficas redundaria em conclusões bastante esdrúxulas sobre a área de ocorrência original de diversas espécies, propiciando a montagem de verdadeiros artefatos amostrais destinados a exercer forte influência sobre estudos biogeográficos e ecológicos. De acordo com algumas análises disponíveis, a anhuma (Anhima cornuta) não teria sido assinalada para o Nordeste do Brasil (apud Hoyo et alii, 1992) e habitaria apenas os .brejos de água doce. (Stotz et alii, 1996) . assertiva das mais peculiares, tendo em vista tratar-se de uma ave encontrada em diversos tipos de paisagens alagadas, descrita a partir do texto de Marcgrave (1648) e de outros autores da época, motivo que levaria o Nordeste do Brasil a ser escolhido como a localidade-tipo da espécie (Hellmayr, 1908). Entre vários outros exemplos, algo semelhante seria mencionado para o arapapá (Cochlearius cochlearius) (Hoyo et alii, op. cit.; Hancock e Kushlan, 1984), a marreca-ananaí (Amazonetta brasiliensis), e a marreca-toucinho (Anas bahamensis) (Hoyo et alii, op. cit.; Madge e
Burn, 1988), além de diversos psitácidas como a arara-canindé (Ara ararauna), e as araras-vermelhas (Ara macao e/ou Ara chloroptera).Na verdade, o motivo que levaria determinadas fontes (Hoyo et alii, 1997; Juniper e Parr, 1998) a considerar certos representantes do gênero Ara como aves jamais assinaladas para o nordeste extremo do Brasil constitui um autêntico enigma, haja vista que a descrição de Ara ararauna se encontra parcialmente baseada no relato de Marcgrave (op. cit.) e que Pernambuco foi designado como localidade-tipo da espécie desde o começo do século (Hellmayr, 1906). Não chega a causar grande comoção, portanto, a risível afirmativa de que o .primeiro. registro de Ara chloroptera para os domínios da caatinga teria sido levado a cabo no Piauí entre 1987 e 1991 (apud Olmos, 1997). Ainda que possa parecer desalentadora, a existência de erros grosseiros não deveria constituir uma novidade em si, pois estabelecer a verdadeira área de ocorrência das diferentes espécies animais constitui tarefa muito mais complexa e trabalhosa do que supõe a grande maioria. Na realidade, mudanças climáticas e outros fenômenos da mesma magnitude estão longe de representar os únicos fatores envolvidos, já que profundas alterações no mundo natural, desencadeadas por ações antrópicas ao longo da trajetória da humanidade, não podem ser desprezadas. Constitui grande surpresa,contudo, que a maioria dos autores empenhados no estudo dabiogeografia silencie sobre o assunto, pois tal lacuna muitas vezesse confunde com uma aceitação tácita de que a distribuição dos animais na superfície do globo teria permanecido essencialmente a mesma durante o período de estabilidade climática observado nos últimos dez mil anos, regra quebrada apenas pela indefectível .perda de biodiversidade. contemporânea. Esta parece ser, de fato, a opinião de uma parcela bastante significativa dos biólogos contemporâneos, apesar de não faltarem evidências de que há muito o homem vem exercendo sua capacidade de promover grandes mudanças na composição das comunidades animais e na própria paisagem de amplos espaços geográficos. Na verdade, o exame de depósitos datados de 2300 a 576 a. C. apontam que Antigua, uma das Pequenas Antilhas, teria perdido, pouco a pouco, várias de suas espécies de mamíferos, aves e répteis pela ocupação humana, processo aparentemente generalizado entre as ilhas do Caribe (MacPhee e Flemming, 1999; MacPhee, Flemming e Lunde, 1999; Reis e Steadman, 1999; Steadman, Pregill e Olson, 1984). Outros indícios sugerem que as primeiras populações indígenas poderiam ter realizado translocações e/ou introduções de aves e mamíferos de importância econômica entre as diferentes ilhas ou até mesmo com o continente (Olson, 1982). Todavia, as informações mais conclusivas nesse sentido dizem respeito às ilhas do Pacífico, pois os estudos levados a cabo no Havaí indicam que parte considerável da avifauna local e dos próprios ambientes de baixada já havia sido dizimada pelos polinésios bem antes da chegada dos europeus, os quais tiveram a oportunidade de registrar apenas uma fração dos animais e plantas antes encontrados no arquipélago. Ao que parece, 50% da avifauna das ilhas havaianas teria desaparecido, percentual capaz de atingir 69% no caso de Ohau e 71% no de Maui. Pelos mesmos motivos, a Nova Zelândia teria perdido 46% de suas aves, a Nova Caledônia pelo menos 40% dos nonpasseres; as Marquesas, entre 55% e 69% da avifauna nativa, conforme a ilha considerada, a ilha de Huahinea, 78% e a de Mangaia, 80%. Os efeitos dessa derrocada atingiriam os rincões mais remotos do Pacífico Sul, pois até mesmo a ilha Henderson, tida como deserta desde sua descoberta em 1606, perdeu 43% da avifauna nativa, após ter sido colonizada e abandonada pelos polinésios entre os séculos XII e XV. Além de alterar profundamente a distribuição das aves que lograram sobreviver, o processo de ocupação humana do Pacífico eliminaria por completo grupos inteiros entre os Threskiornithidae, Anatidae, Megapodidae, Rallidae etc., estando os representantes incapazes de voar entre os primeiros a ser riscados do mapa, conforme demonstra o caso clássico das cerca de 12 espécies de moas (Dinornithiformes) antes conhecidas da Nova Zelândia. Como um todo, estima-se que mais de duas mil espécies de aves podem ter sido extintas nas ilhas do Pacífico tropical graças à ação antrópica, cifra espantosa que representa 20% do total de espécies de aves existentes no planeta. Por não levar em conta esse quadro, parcela razoável dos estudos referentes à sistemática, evolução e ecologia das aves encontradas nas ilhas do Pacífico teria sido induzida a sérios erros ou revelar-se-ia um mero desperdício de esforço (Athens, Kaschko e James, 1991; Balouet e Olson, 1989; James e Olson, 1983; James et alii, 1987; Olson, 1990, 1989; Olson e James, 1984, 1982; Steadman, 1995, 1989, 1985; Steadman e Olson, 1985). As profundas alterações no mundo natural promovidas pelas ações antrópicas dos últimos seis mil anos não estiveram restritas aos frágeis ambientes insulares, embora sua ação em grandes massas continentais usualmente assuma aspectos bastante complexos e se revele bem mais difícil de comprovar em face da própria extensão do espaço geográfico envolvido. Entre os vários exemplos nesse sentido, talvez um dos mais notáveis seja conferido pelas pesquisas de Bodenheimer (1960) acerca dos animais do Egito e do Oriente Médio, estudos que terminaram por desenhar uma fauna muito diversa da atual e até mesmo daquela registrada durante a alta Idade Média. Apenas à guisa de ilustração, vale comentar que os tigres (Panthera tigris)(Lineu, 1758) sobreviveram nas vizinhanças do mar Cáspio pelo menos até 300 a. C., ao passo que os leões (Panthera leo) (Lineu, 1758) desapareceram do Iraque apenas no século XIX. Hoje restrita ao Paquistão, Índia e Bangladesh, a cervicapra (Antilope cervicapra) Lineu, 1758) chegou a ser comum na Mesopotâmia, enquanto que o elefante indiano (Elephas maximus) (Lineu, 1758) ainda ocorria no alto Eufrates e talvez também em Antióquia, até 1000 a. C. Encontrados nos dias de hoje apenas ao sul do Saara, a girafa (Giraffa camelopardalis) (Lineu, 1758), o hartebeest (Alcelaphus busephalus) (Pallas, 1776) e o licaonte (Lycaon pictus) (Temminck, 1820) existiram no Egito até o final do período pré-dinástico (3100 a. C.), cabendo notar que esse último chegou mesmo a ser domesticado para a caça de gazelas e antílopes. Além de mover uma perseguição sem trégua aos elefantes do Norte da África após as guerras Púnicas (264-146 a.C.) (Toynbee, 1973), os romanos quase exterminaram os hipopótamos por causa dos grandes prejuízos causados às plantações nas margens do Nilo, um dos motivos que levaria esse mamífero a ser erradicado da região por volta do século XII. Os ouriços (Atelerix algirus) (Lereboullet, 1842), as civetas (Viverra civetta) (Schreber, 1776), certas gazelas (Gazella spp.), um gavião (Melierax gabar) (Daudin, 1800), o waldrapp (Geronticus eremita) (Lineu, 1758) e o crocodilo (Crocodilus niloticus) (Laurenti, 1768) teriam sido extintos do Egito antes do século XVIII, enquanto que o orix (Oryx gazella) (Lineu, 1758), o addax (Addax nasomaculatus) (Blainville, 1816), o avestruz (Struthio camelus) e o íbis sagrado (Threskiornis aethiopicus) (Latham, 1790) perdurariam até o começo do século XIX.
Por não recuar tanto no tempo quanto a grande maioria dos casos anteriores, as fontes históricas disponíveis sobre o Nordeste do Brasil constituem prova eloqüente de que alterações muito significativas na composição e distribuição dos animais podem acontecer no intervalo de apenas algumas centenas de anos. Com efeito, o material produzido durante o domínio holandês e outros relatos dos séculos XVII e XVIII configuram uma realidade bastante diversa da atual, que se encontra caracterizada por uma ausência quase completa de paisagens florestais, formações interioranas cada vez mais áridas e terrenos alagados em franca retração. Não deve causar surpresa, portanto, que grande parte das espécies das matas secas ou úmidas do Nordeste tenha sido extinta ou caminhe a passos largos para a extinção, enquanto que várias das aves aquáticas desapareceram ou se tornaram tão raras que a combalida literatura ornitológica contemporânea não encontra grande dificuldade em desconhecer os antigos registros existentes. A exemplo de outras áreas sob intensa ocupação humana, observase uma acentuada perda das espécies de maior porte, processo marcado pela desaparição completa, ou quase completa, das emas (Rhea americana), jaburus (Jabiru mycteria), anhumas (Anhima cornuta), araras (Ara spp.), grandes gaviões (Accipitridae) etc. (Teixeira et alii, 1986). A mesma tendência ocorreria em relação aos mamíferos, pois os últimos estudos sobre esse grupo zoológico levados a cabo na região primam pela ausência de qualquer alusão às antas (Tapirus terrestris) (Lineu, 1758), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla), e várias outras espécies assinaladas durante o domínio holandês, enquanto certos táxons, como a onça-pintada (Panthera onca), são mencionados apenas de forma muito condicional (Eisemberg e Redford, 1999; Mares, Willig e Lacher, 1985; Mares, Willig, Streilen et al., 1981; Willig e Mares, 1989). Na verdade, a atual distribuição de Anodorhynchus leari, Cyanopsitta spixii e de várias outras aves deve ser entendida como um artefato de origem antrópica que pouca semelhança guarda com a provável área de ocorrência da espécie há alguns poucos séculos, fenômeno também observado em relação a diversos mamíferos nordestinos como Allouata belzebul (Lineu, 1766) (Coimbra-Filho e Câmara, 1996; Langguth et alii, 1987). Por conseguinte, tampouco parece necessário recuar ao pleistoceno para explicar a propalada .falta de adaptação. da fauna local às condições de aridez (apud Mares, Willig e Lacher, op. cit.; Mares, Willig, Streilen et al., op. cit.; Vivo, 1997), pois semelhante paradoxo talvez derive apenas de a caatinga ter sido uma paisagem bem mais arbórea e muito menos árida em um passado nada remoto (Coimbra-Filho e Câmara, op. cit.). Por outro lado, as fontes históricas propõem alguns problemas que podem nunca vir a ser resolvidos de forma satisfatória, conforme demonstra a discussão sobre a possível ocorrência de aves como o guará (Eudocimus ruber) e a guaruba (Aratinga guarouba) no Nordeste do país. No entanto, os indícios mais intrigantes dizem respeito a eventuais espécies extintas que jamais chegaram a ser descritas ou cuja existência vem sendo objeto de acirradas controvérsias, como talvez seja o caso de alguns psitácidas. Nesse particular, o exemplo do tucana de Marcgrave (1648) revela-se curioso ao extremo, pois a sucinta descrição disponível parece não corresponder a nenhum Ramphastidae conhecido, embora guarde certa semelhança com um estranho araçari de
procedência ignorada, retratado na Coleção Niedenthal. A questão tornase ainda mais complexa pelo fato de essas ilustrações estarem claramente baseadas em uma ave viva e também representarem um exemplar de Pteroglossus aracari, espécie muito comum no Nordeste do Brasil, várias vezes figurada pelos holandeses. O pressuposto de que a distribuição de numerosos animais pode ter sofrido profundas alterações durante os últimos séculos apresenta sérios reflexos em termos de nossa visão do mundo natural. Por conseguinte, boa parte dos padrões observados nos espaços geográficos que sofreram uma influência antrópica de certa magnitude deve ser entendida comoum artefato construído pelo homem em um período relativamente curto,em vez de representar a expressão de fenômenos .naturais. observados ao longo do processo evolutivo. Como esse fenômeno costuma produzir áreas de ocorrência que pouca semelhança guardam com as originais, a
tentativa de basear hipóteses de sistemática, evolução e ecologia apenas nos registros atuais revela-se no mínimo temerária, sobretudo tendo em vista que mesmo os locais mais remotos do planeta podem reservar surpresas bastante inesperadas quanto a uma antiga e insuspeita ocupação humana. No que diz respeito ao nordeste extremo do Brasil e a outras regiões que perderam grande parte de suas paisagens naturais, a existência de padrões .artificiais. deve constituir antes a regra do que a exceção, com o agravante de que ocorrências relituais podem ser facilmente alteradas a curtíssimo prazo por fatores tão variados e imponderáveis como a cobiça de um proprietário, um incêndio acidental ou mesmo um simples gato faminto. Não parece impossível, portanto, supor que diversas áreas isoladas com um alto número de endemismos não passem de meros artefatos, em lugar de representar o produto de intricados fenômenos evolutivos, ou que a ação antrópica possa produzir numerosos casos de alopatria entre táxons aparentados, os quais constituiriam exemplos perfeitos para a demonstração do .princípio da exclusão competitiva. (Gause apud Lincoln et alii, 1984) e/ou do conceito de .espécie geográfica. ou .superespécie. (Haffer, 1974; Mayr, 1969) se não tivessem sido criados pelo homem há poucos séculos. Conforme mencionado por Olson (1990), a hipótese biogeográfica proposta por MacArthur e Wilson (1967) viu-se bastante abalada pela descoberta de que o modelo utilizado, a avifauna das ilhas do Pacífico, sofreu forte influência dos polinésios, que alteraram sobremaneira a distribuição original de várias espécies e promoveram uma autêntica extinção em massa muito antes da chegada dos primeiros exploradores europeus. Nesse mesmo sentido, as observações de Teixeira et alii (1986) sobre as matas nordestinas abrigarem uma avifauna típica das terras altas e outra das baixadas costeiras devem ser encaradas com grande suspeita, pois nada impediria que semelhante padrão resultasse dos azares de uma intensa ação antrópica sobre um número muito limitado de remanescentes florestais, os quais lograram subsistir exatamente por estarem situados em áreas de difícil acesso, como as vertentes mais íngremes das serras e os estreitos vales encaixados típicos dos tabuleiros litorâneos. De fato, algumas espécies conhecidas apenas das matas de altitude (p. ex., Terenura sicki Teixeira e Gonzaga, 1983, Procniasnudicollis e Iodopleura leucopygia Salvin, 1885) terminariam sendo assinaladas em terrenos mais baixos (Almeida e Teixeira, 1997; Teixeira, 1987; Teixeira et alii, 1990), enquanto que a tradição oral, velhos registros e a própria toponímia da região registram a presença de Mitu mitu e outras aves supostamente próprias das florestas litorâneas para áreas mais altas (Teixeira e Papavero, 1999). Na verdade, mesmo a simples tentativa de estabelecer a área de ocorrência original de uma dada espécie pode representar uma tarefa bem mais complexa e trabalhosa do que supõe a grande maioria dos autores atuais (Bibby et alii, 1992; Wege e Long, 1995). Além de conferir maior nitidez à importância de estudos capazes de integrar acervos zoológicos com fontes históricas, etnográficas e arqueológicas, a existência de padrões de distribuição absolutamente
.artificiais. lança sérias dúvidas sobre determinados aspectos relativos à conservação da diversidade biológica do planeta. Mais do que preservar a diversidade remanescente, boa parte das iniciativas atuais pretende garantir a continuidade de uma suposta herança .natural. que, ao menos em alguns casos, possui apenas alguns séculos de existência. Semelhante paradoxo pode levar às mais curiosas deformações em termos das prioridades e políticas a serem adotadas, conduzindo muitas vezes a ações inócuas ou destinadas ao fracasso, por contemplarem apenas aspectos tópicos e/ou cometerem sérios erros de premissa. Considerando o elevado prestígio que o mercado persa da conservação atribui às áreas jamais tocadas pelo homem e aos pretensos .refúgios ancestrais., parece bem mais provável que a existência desses artefatos seja ignorada como uma simples inconveniência, produto de métodos pouco ortodoxos que utilizam velhos documentos e outras fontes pouco convencionais para obter resultados discutíveis. Nesse sentido, não deixa de ser curiosa a constatação de que as restrições cada vez maiores impostas à coleta de espécimens zoológicos vêm reduzindo a ornitologia contemporânea a um somatório de relatos bem inferior aos dos séculos XVII e XVIII, pois as listagens produzidas sequer contêm elementos descritivos que permitam submeter a identidade das espécies assinaladas a qualquer tipo de teste. Por último, cumpre reconhecer que a ocorrência de tais artefatos pode ser de difícil aceitação por motivos bem menos mundanos, entre os quais se destaca o perpétuo fascínio exercido pelo mundo natural sobre uma humanidade cada vez mais citadina. Não constituindo em absoluto um fenômeno recente (Schama, 1996), essa atração quase sempre reflete o sonho libertário que identifica a paisagem natural, seja ela silvestre ou pastoril, com a nostalgia de uma Idade de Ouro imaginária e fabulosa, a fuga de uma realidade social sombria ou a reconquista de uma promessa de grandeza capaz de afastar o peso insuportável de um cotidiano de pequenas mazelas. No entanto, esse sentimento carrega uma pesada carga de ambigüidade, pois o verdadeiro mundo natural, feito de silêncio, caos e noite antiga, prossegue tão hostil e inóspito quanto na aurora dos tempos, maldição a ser combatida com todas as forças e todos os meios, por mais que os discursos vigentes afirmem o contrário. Apenas sua derrota permitirá a plenitude do mito, pois é em torno desse adversário vencido e inerme que se consolida a visão idílica da paisagem natural como um autêntico jardim das delícias, fantasia construída sobre tristes remanescentes domesticados que variam entre a casa de campo, o bosque suburbano e o parque nacional. Ao macular uma natureza que se pretende intocada pela mão humana, a história passa a ser inimiga do mito e conduz a uma indesejada reflexão sobre o cunho utilitarista que sempre marcou as relações do Ocidente com o universo natural. Além de afastar qualquer sonho de remissão, esse perambular pelas trevas adquire contornos quase profanos, ao trazer do passado uma imagem tão inesperada e angustiante, frágil desenho composto de documentos esfacelados, frases incompletas e velhas figuras, farrapos de uma memória cada vez mais gasta e débil, último refúgio de um mundo que não mais existe sob o sol. Estranho oráculo esse, cuja indizível crueldade condena à renovada lembrança de florestas sem fim e do grito das aves a escurecer o céu em um perdido dia de glória.